2009/11/18

Longe


Tenho quartos claros, na moradia escura que sou.
Quedo-me nos cantos e encontro nas esquinas a partida,
Sou recortes esquecidos, e vendo-me aos bocados,
Ao preço certo, até dou a troco a própria a vida.

Quando acordo
Encontro muros que latejam, sem fôlego nem solução
E resolvo-me por papéis que não têm estrada
Mas antes suam um eterno nada, que não me parece satisfazer.

E esqueço-me então do retumbar solene do relógio da cabeceira
Que se adensa na minha carne,
E sangro dos veios da madeira
- que em verdade são mais meus que a minha própria circulação.

Hoje é de madrugada
E já se passaram vinte e seis horas de um dia.
Guardo sons e clamores amordaçados
Debaixo do tecto que ruirá sobre a dor que eu sentia.

Não há tempo.
Não tenho casa.
Matei os deuses que adorei em existência,
Escondo-me do sol debaixo da asa
De uma eterna, imensa complacência
Que parece esquecer-se de que o que eu mais queria
Não era sobreviver, mas ao Ser glorificar a própria vivência
Que não faz sentido sem ti como companhia.

Quando é que te vejo?
Na obscuridade profunda em que te escondes
Que é quem eu fui e quem eu lamento
Na pior das hipóteses, é meu ser incorpóreo o derradeiro desalento
Porque estou sem forças nem tenho matéria para vencer.

À hora dos finados, eu busco
Sondo campas e sepulturas
Procuro-nos a nós enterrados
E dormindo quietos, tendo por mortalhas todas as amarguras
De quem só na Morte nos conseguiu prender.

A vida foi-me injusta.
Deu-me todos os “ores” da finitude;
Dissabores, dores, horrores
E em infinita graça até os amores
Não houve nada para além da juventude, que valha a pena recordar.

Atravesso então, agora
Em 744 dias de zombar sem caminho
Encontrei apenas um buraco negro comigo
Do que um dia foi o que eu amei.

A História goza com a minha solidão:
levaram-me tudo.
As glórias e os insucessos que tive
Em boa análise, só me fizeram sofrer.

E na nudez do limbo em que me encontro
Não vejo inocência mas rancor
Dos despojos em antemão retirados
Na derradeira luta em que me irão fazer perder.

Sou um nada errático e dormente
Pairo espectral entre toda a gente
E ensurdeço no silêncio em que me afogaram.

Não levo para o outro lado a alegria
Nem o prazer, nem a euforia
Em que me levaram a acreditar.
Não levo sequer o que fui, nem as causas porque lutei
Nem as memórias em sinestesia do que gostei,
Mas o amor  que nesta vida dei
Sem esperar nada em troco receber.

Por quem os sinos dobram?
Não sei. Mas por mim, não é de certeza.




Francisca Soromenho
Lisboa, 18 de Novembro de 2009

14 comments:

  1. do melhor que tenho lido ultimamente, muito bom gosto e aprecio a simbologia eficaz deste poema. escreves muito bem! muito mesmo, vou te indicar um blog ao qual deveras ir visitar, a facilidade com que escreves merece estar num blog tambem digno da tua escrita.http://www.omphalosdementia.blogspot.com/

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  2. desculpa não asssinei o comentário por lapso.
    é que fiquei impressionado da forma como escreves. muito bom! de facto é do melhor que tenho visto.

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  3. Muito obrigada! Ainda bem que gostaste! Não costumo escrever poesia com uma métrica tão convencional, mas decidi experimentar a ver no que resultava...

    A Marta Sousa já me tinha mostrado o Dementia. Ando a pensar seriamente nele.

    Beijinhos, aparece em qualquer altura.

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  4. Luís, não consigo comentar no teu blog mas comento aqui.
    Relativamente ao poema Vaga...

    Estou perdidamente pela simetria entre o que eu sinto e o que o poema expressa, numa multiplicidade imensa de sentidos que se parecem beijar e contorcer e choca - o triplo paradoxo de se ser, antes de mais nada, criador.
    O latejar artístico é uma sina masoquista: "dói e gosto porque me faz sentir."
    Somos todos aditos na nossa criação - e ainda bem. O abrir dos sentidos, a neblina da droga a correr nas veias... faz tudo parte de um sinestésico "todo" que nos faz passar do existir para o Ser.

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  5. antes de mais obrigada sincero francisca. eu quando leio o "vaga" é estranho, não consigo ao ler o vaga, conceber como coisa que fizesse agora. pois estou a transformar-me e a optar por poemas sem rima. vou por mais lá para tu ires ver, e isso de não conseguires comentar no blog tenho que resolver.sim! o gosto pela dor, alias desde que me recordo haver conciençia em mim... tive esse gosto... completamente é a tal passagem do existir para o ser, qundo escrevo não sou eu não tenho espaço para definir essa sensação estranha.beijinhos e cria muito, obrigada.

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  6. há.. esqueci de dizer no meu blog esão lá poemas assinados com sebastião silva, da-se que foi uma tentativa de um heterónimo, completamente falhada... aparece sempre.

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  7. O Sebastião Silva és tu? Também gostei imenso das coisas "dele". Não achei uma tentativa completamente falhada, de todo...
    beijinhos

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  8. sim francisca era já nem sei. juro confusão olha se me permites a ousadia posso te dar o meu mail?beijinhox

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  9. está lá o meu mail a seguir ao vaga. obrigada.

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  10. francisca, o longe é dos melhores poemas que de longe, li até agora! acho que esta a um nivel superior de raciocínio e de escrita, sem querer repetir-me os meu sinceros parabens!beijinhos
    L.B

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  11. Convido vc para conferir meu poema lá no blog do Francisco. No meu blog da Curiosa tem o link. Se vc. quiser acessar e compartilhar comigo este momento, ficarei muito feliz.
    Com muito carinho eu deixo o convite, desse poetisa.
    Muito obrigada.
    Sandra

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