Tenho quartos claros, na moradia escura que sou.
Quedo-me nos cantos e encontro nas esquinas a partida,
Sou recortes esquecidos, e vendo-me aos bocados,
Ao preço certo, até dou a troco a própria a vida.
Quando acordo
Encontro muros que latejam, sem fôlego nem solução
E resolvo-me por papéis que não têm estrada
Mas antes suam um eterno nada, que não me parece satisfazer.
E esqueço-me então do retumbar solene do relógio da cabeceira
Que se adensa na minha carne,
E sangro dos veios da madeira
- que em verdade são mais meus que a minha própria circulação.
Hoje é de madrugada
E já se passaram vinte e seis horas de um dia.
Guardo sons e clamores amordaçados
Debaixo do tecto que ruirá sobre a dor que eu sentia.
Não há tempo.
Não tenho casa.
Matei os deuses que adorei em existência,
Escondo-me do sol debaixo da asa
De uma eterna, imensa complacência
Que parece esquecer-se de que o que eu mais queria
Não era sobreviver, mas ao Ser glorificar a própria vivência
Que não faz sentido sem ti como companhia.
Quando é que te vejo?
Na obscuridade profunda em que te escondes
Que é quem eu fui e quem eu lamento
Na pior das hipóteses, é meu ser incorpóreo o derradeiro desalento
Porque estou sem forças nem tenho matéria para vencer.
À hora dos finados, eu busco
Sondo campas e sepulturas
Procuro-nos a nós enterrados
E dormindo quietos, tendo por mortalhas todas as amarguras
De quem só na Morte nos conseguiu prender.
A vida foi-me injusta.
Deu-me todos os “ores” da finitude;
Dissabores, dores, horrores
E em infinita graça até os amores
Não houve nada para além da juventude, que valha a pena recordar.
Atravesso então, agora
Em 744 dias de zombar sem caminho
Encontrei apenas um buraco negro comigo
Do que um dia foi o que eu amei.
A História goza com a minha solidão:
levaram-me tudo.
As glórias e os insucessos que tive
Em boa análise, só me fizeram sofrer.
E na nudez do limbo em que me encontro
Não vejo inocência mas rancor
Dos despojos em antemão retirados
Na derradeira luta em que me irão fazer perder.
Sou um nada errático e dormente
Pairo espectral entre toda a gente
E ensurdeço no silêncio em que me afogaram.
Não levo para o outro lado a alegria
Nem o prazer, nem a euforia
Em que me levaram a acreditar.
Não levo sequer o que fui, nem as causas porque lutei
Nem as memórias em sinestesia do que gostei,
Mas o amor que nesta vida dei
Sem esperar nada em troco receber.
Por quem os sinos dobram?
Não sei. Mas por mim, não é de certeza.
Francisca Soromenho
Lisboa, 18 de Novembro de 2009